29/06/2022

Fonte: Valor Econômico

O corte de ICMS para combustíveis, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo, em vigor desde sexta-feira, e o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a forma de cálculo do imposto sobre os combustíveis provocarão perda entre R$ 105 bilhões e R$ 136 bilhões para Estados e municípios, mais de 10% de toda a arrecadação com o imposto estadual. A redução brusca de receitas colocará governantes sob pressão, principalmente a partir de 2023, e especialistas e políticos veem um cardápio limitado de opções para que possam equilibrar isso.

Compensar com aumento das alíquotas de ICMS sobre outros bens e serviços ou dos outros impostos estaduais, IPVA (sobre veículos) e ITCDM (sobre herança), é visto como insuficiente e politicamente difícil. Uma alternativa, do ponto de vista da receita, é retirar benefícios fiscais concedidos a determinadas empresas e setores. Outra saída é forçar a reforma tributária do ICMS, para calibrar o novo imposto de formar a recompor essas perdas. Há quem acredite, por outro lado, que o resultado será pressão por mais repasses da União e precarização dos serviços públicos. A arrecadação hoje está em alta por causa da inflação, mas essa mesma inflação começará a pressionar os gastos em breve por reajustes dos salários e contratos.

A decisão adotada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) para frear a inflação atropelou Estados e municípios. Os governadores se dividiram entre os que criticaram o projeto, dizendo que não solucionaria a alta da energia e dos combustíveis, e os aliados ao presidente, que elogiaram a medida. Houve, de todos os lados, preocupação de que a resistência ao corte de imposto fosse utilizada para atacá-los em outubro, dada a proximidade com as campanhas eleitorais.

Entre parlamentares que estiveram à frente do projeto, o discurso nos bastidores é de que não haverá queda de arrecadação substancial este ano, por causa da inflação e do gatilho que obrigará a União a compensar perda de receita superior a 5% em relação a 2021, regra que valerá só até dezembro. A partir de janeiro, dizem, os novos governadores e o presidente eleito terão condições de avaliar o cenário e adotar as medidas necessárias.

Do lado dos entes federativos, o discurso é de perdas gigantescas. A Confederação Nacional dos Municípios (CNM) estima que o corte do ICMS tirará R$ 85 bilhões em receitas por ano dos Estados e municípios e a decisão do ministro André Mendonça, do STF, de que o cálculo do imposto sobre combustíveis se baseia na média dos últimos cinco anos elevará as perdas em mais R$ 20 bilhões. O Comitê Nacional de Secretários de Fazenda dos Estados (Comsefaz) apresentou números maiores ontem ao STF, apontado queda de arrecadação de até R$ 136 bilhões.

Um técnico da secretaria da Fazenda de um dos maiores Estados do país disse ao Valor na semana passada que ainda não há discussões entre os governadores sobre como contornar isso. Eles aguardam o desenrolar de todas as ações do governo federal e a decisão sobre ações judiciais. Ele corroborou, contudo, a visão de que tamanho do rombo é elevado e exigirá medidas, seja corte de gastos ou aumento de impostos, provavelmente anunciadas só em novembro, depois da eleição. O impacto nos cofres também diferirá para cada Estado porque depende da alíquota hoje aplicada aos itens com taxação reduzida pela nova lei, então as soluções em cada local também devem ser diferentes.

O economista do Santander Ítalo Franca destaca que em 2021 foi o maior superávit primário da série histórica para os governos regionais (governos estaduais e prefeituras), com saldo positivo de R$ 97,7 bilhões entre receitas e despesas, mas que a nova lei comprometerá esse resultado. A projeção dele é que este ano haveria superávit de R$ 70 bilhões, mas o corte do ICMS derrubará isso a R$ 25 bilhões. Para 2023, quando a nova lei atingirá a arrecadação do ano inteiro, haveria déficit, considerando também o aumento de gastos como salários e pisos constitucionais para saúde e educação. “Isso traria problema para as contas estaduais. Vai ser um ajuste bem duro.”

Presidente da Associação Nacional das Associações de Fiscais de Tributos Estaduais (Febrafite), Rodrigo Spada destaca que há Estados que estão de fato com um alívio temporário no caixa por razões conjunturais, mas há outros em regime de recuperação fiscal, como Rio de Janeiro, Goiás e Minas Gerais, com dificuldade de honrar pagamentos. “E a perda é permanente”, lembrou.

Na opinião de Spada, os governadores terão dificuldade de compensar a perda no ICMS com aumento do IPVA e ITCMD porque são impostos diretos, com o boleto chegando na casa do contribuinte mais rico e com maior capacidade de mobilização. “O mais provável é o aumento do próprio ICMS em outras frentes. É um imposto que o contribuinte não sabe o quanto paga porque está embutido no preço da mercadoria. Quem recolhe é o empresário, mas quem suporta o ônus é o comprador”, disse. Essa solução, destacou, prejudicaria os mais pobres.

Essa alternativa, porém, encontra dois entraves. Para evitar que a redução do imposto sobre a gasolina fosse compensada com aumento da taxação sobre o diesel e etanol, o Congresso proibiu a elevação de alíquotas de combustíveis e energia que já fossem menores do que a padrão (17% ou 18%). Além disso, combustíveis, energia e comunicações são hoje as “blue chips” do ICMS e representam até 50% da arrecadação do imposto em alguns Estados. São itens que, mesmo com preço mais alto, a população não consegue deixar de consumir, diferentemente da compra de geladeira ou fogão.

É por causa dessas travas que o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), que foi relator da reforma tributária numa comissão mista do Congresso que acabou enterrada por divergências políticas, acredita que haverá pressão maior para votar o tema em 2023. “Facilita porque nem o governo federal vai ter como compensar os Estados e nem os governadores terão como sobreviver com um corte desses”, afirmou. Para ele, a proposta de emenda constitucional (PEC) 45 teria resolvido o problema por aplicar alíquota única para todos os bens e serviços, com uma taxação extra para itens que causam “externalidades negativas”.

Gabriel Leal de Barros, sócio e economista-chefe da Ryo Asset, também vê um consenso se formando sobre a necessidade de mudar a tributação dos Estados. “Será inescapável. É o certo escrito por linhas tortas.” O risco, pontua, é se isso não vier acompanhado de medidas na parte dos gastos: a reforma administrativa, a revisão dos programa sociais e a definição da nova âncora fiscal do país.

“Seja quem ganhe, Lula ou Bolsonaro, está claro que o teto de gastos será revisto e a qualidade da reforma tributária será proporcional ao tamanho dessa flexibilização”, sustenta Barros. “Se o novo espaço para gastos for muito grande, ao invés de fazer reforma tributária que foque em eficiência, o governo acabará fazendo uma reforma para aumentar a arrecadação. E se essa é a preocupação, a chance de aumentar imposto no lugar errado é muito maior, o que pode reduzir o crescimento potencial do PIB ainda mais.”

Na atual legislatura, os Estados pressionaram pela aprovação da reforma do ICMS, com a criação de um Impostos sobre Valor Agregado (IVA) que uniria de cinco a nove impostos, mas no fim ocorreram divergências com o governo federal sobre a criação de um fundo para compensação de perdas, com setores empresariais contrários, como serviços e agropecuária, e com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), adversário do relator da PEC.

Presidente da CNM, Paulo Ziulkoski afirmou que a reforma tributária é discutida há 30 anos sem avanços e que não acredita na aprovação na próxima legislatura. A questão mais urgente, disse, é reformar o pacto federativo e rever as responsabilidades da União, Estados e municípios. “Não temos nenhuma capacidade de manobra para tentar reverter essa perda”, disse. As cidades só têm três impostos (IPTU, ISS e ITBI) que, mesmo nas maiores prefeituras, como São Paulo, só representam 7% das receitas.

A perda de até R$ 13 bilhões este ano e R$ 26 bilhões anuais a partir de 2023 pelo corte do ICMS não será compensada com outras receitas, mas com precarização dos serviços públicos à população, disse Ziulkoski. “O cidadão é que será afetado. Não terá dinheiro para manutenção do colégio, transporte escolar, distribuição de remédios, atendimento adequado de saúde”, criticou.

Economista-sênior da Tendências Consultoria, Juliana Damasceno destacou que os Estados vivem conjuntura atípica, com gastos menores por causa do congelamento de salários durante os dois anos da pandemia, e aumento das receitas devido à inflação, mas essa combinação cobrará seu preço e isso pode ocorrer mais cedo se a inflação desacelerar. “O imposto inflacionário ajuda no curto prazo, mas no médio e longo prazo ele atrapalha pela parte do gasto. Seja porque os servidores vão pressionar por reajustes, seja porque os contratos serão reajustados”, diz.

Como uma reforma tributária passa por um “caminho muito longo, desgastante e difícil”, Juliana crê como mais provável algum aumento de impostos pelos Estados e a revisão de a incentivos fiscais concedidos, principalmente no âmbito da guerra fiscal. “Esses governos vão se ver obrigados a repensar esses benefícios e estudar de que forma conseguem retirar”, pontua. Estudo da Febrafite mostrou que, em 2020, a renúncia fiscal em decorrência desses incentivos chegou a R$ 92 bilhões, valor próximo do rombo imposto agora pela União. Em lugares como Paraná, Paraíba e Goiás, a conta ultrapassava 30% da receita do ICMS.

Published On: 29 de junho de 2022

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